sexta-feira, 29 de abril de 2011

O saber do olhar

Por Gabriela Abrunheiro

A vida que ninguém vê, Eliane Brum, 203 pp. Arquipélago Editorial, Porto Alegre, 2006. Preço: R$ 32.

No livro ‘A vida que ninguém vê’, vencedor do prêmio Jabuti, em 2007, como melhor livro de reportagem, Eliane Brum transcende a noção de noticia e sai do lugar comum quando enxerga no cotidiano e no anonimato de pessoas comuns histórias excepcionais. Mistura reportagem com literatura, ao falar sobre o Carregador de Malas que nunca voou; a menina deficiente que pouco

a pouco vence todos os obstáculos ou o homem que comia vidro e só se machucava com a invisibilidade.

Para cada um dos seus personagens, cerca de 20, é dedicado um capitulo que pode ser classificado como crônica, mas que traz também elementos do conto: o mítico, o fantasioso. De forma sutil, a autora envolve o leitor nas particularidades de cada história. Depois disso, como boa jornalista, mostra o desfecho de cada história, matando a sede do leitor de saber o que aconteceu, ou se realmente aconteceu alguma coisa.

O exemplo mais marcante fica por conta do senhor Adail. Negro e de origens simples, seu trabalho sempre foi o de carregar as malas que chegam ao aeroporto de Porto Alegre. Simpático, conta que seu sonho é um dia poder voar. Todos que passam por ele, estavam lá em cima, e ninguém percebe que, apesar de pertencer aquele universo, Adail sempre esteve em solo firme. E, é assim, com os pés na terra, que descreve como seria o dia do sonho realizado.

Bastante emocionante também é a história de Eva. Uma menina deficiente, forte e decidida que, diferente dos outros, aceitava a sua condição e não se importava de ser quem é. Sem se fazer de vítima, dia após dia, supera um obstáculo. De forma que seus problemas físicos acabam por deixar a mostra os defeitos de alma do próximo, mostrando que tudo é relativo. Num mundo onde todos almejam a perfeição, Eva, simplesmente, se permite ser imperfeita. Para desespero de alguns.

A constante do livro é o sugere seu título: a vida que ninguém vê. Os entrevistados, geralmente humildes e oriundos de situações adversas, são socialmente invisíveis, chegando, muitas vezes, à escala de repudio. O quanto isso entristece e machuca fica claro na história do homem que come vidro. Desde pequeno ele sempre mastigou garrafas e azulejos, sem nunca se machucar, mostra sua arte no calçadão, mas ninguém repara. Quando vê a jornalista, quer logo mostrar seus dotes.

Ao mudar o olhar e focalizar um lado que normalmente é tido como comum ou natural, Eliane faz aquilo que chamamos de jornalismo literário, de forma muito bem feita. Talvez não tão estatístico como Talese, por exemplo. Seu texto poético traz humanidade ao leitor, que se coloca ao lado dos personagens, que se envolve e torce para que cada um alcance o seu objetivo.

Indo além, ela ensina como fazer um bom jornalismo - aquele no qual se deve sujar os sapatos e não só ficar à tela do computador-. Pode-se dizer que a autora percorreu três etapas. A primeira foi a escolha dos entrevistados, para isso, contou com a sensibilidade característica dos que trabalham com comunicação. Em seguida, nas entrevistas, extraiu o máximo de seus personagens. A terceira tarefa, talvez a mais fácil, era escolher as palavras corretas para transformar toda aquela bagagem em texto.

Vale lembrar que inicialmente “A vida que ninguém vê” era uma coluna do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, publicada aos sábados, durante os anos 90. Atualmente a autora, Eliane Brum é repórter especial da Revista Época e segue exercitando seu olhar diferenciado, buscando, a cada nova empreitada, entregar-se numa realidade desconhecida ou despreparada, sem pré-julgamentos.


(Resenha escrita para a matéria de Jornalismo Básico II)

2 comentários:

Anônimo disse...

"O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva."

Anônimo disse...

Se o livro é tão bom quanto a sua resenha, vale muito a pena ler. Enfim, acabou de entrar pra minha - grande - lista de livros que ainda vou ler.