sábado, 15 de junho de 2013

São Paulo não parou. Acordou!



Um pequeno relato do que eu vi, vivi e ouvi na manifestação contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo. O dia foi histórico.  


Foto: Gabriela Abrunheiro

Quinta - feira, 13 de junho. O clima já era de tensão horas antes. Ainda no trabalho, pelas redes sociais e pelo celular, os amigos mandavam mensagens e me pediam cuidado. Segundo eles, a PM já estava ocupando o centro da cidade e estava autorizada, pelo prefeito, governador e pela mídia a bater, ainda mais, nos que estivessem na rua. Um colega, veterano, foi preso antes mesmo de chegar à manifestação. Na sua mochila, uma blusa, uma câmera e uma garrafa de água. Outros, apenas por portar vinagre ou estar comprando um cigarro.

Quinta - feira, 13 de junho. Já estava na portaria do prédio onde trabalho. Minha chefe, sentada, fumava. Informei que estava saindo um pouco mais cedo, que iria à manifestação. "Você vai estar nos livros de história dos meus netos? Então, ok". Dois passos à frente, meu celular toca. Minha mãe me pedia para ir pra casa, passar longe do protesto. Argumentei que precisava estar lá e prometi mandar notícias.

Quinta - feira, 13 de junho. Encontrei com dois amigos da faculdade (de jornalismo, Cásper Líbero) na catraca do metrô República às 18h30. Ali, os seguranças da estação, de capacete e coletes a prova de balas, já faziam um cordão e olhavam com cara feia para aqueles que pareciam suspeitos.  Dois jovens adentravam a estação e já gritavam: “Mãos para o alto, três e vinte é um assalto”.

Foto: Gabriela Abrunheiro


Quinta – feira, 13 de junho.  Entramos no meio da multidão.  Era tanta gente que não conseguíamos identificar onde começava e/ou terminava. Bandeiras, faixas, cartazes. As caras estavam pintadas, os narizes, vermelhos. Alguns rostos cobertos por blusas, lenços e máscaras. O clima era bom, as pessoas pareciam felizes. A bateria ditava o ritmo. E tinha gente de todo o tipo, como é comum a São Paulo. Jovens, velhos, trabalhadores, estudantes, partidaristas, skatistas e todas as outras tribos que aqui vivem e sobrevivem.  O grito “CPTM, vê se me escuta, a sua luta é a nossa luta” – apoiava a greve dos ferroviários, que acontecia naquele mesmo dia.  

Quinta – feira, 13 de junho. Estávamos na Augusta, rua que liga o bairro dos Jardins ao baixo centro, símbolo da pluralidade existente na cidade. Éramos um grupo de umas 400, 500 pessoas. Pode ser que mais, não sou muito boa com números. A ideia era subir até a Av. Paulista só que estávamos parados, literalmente no meio da rua. Na janela de um prédio do lado esquerdo, um moço segurava uma criança, loira, de cabelos médios, encaracolados. Não sei se menino ou menina, mas deveria ter uns quatro anos. Nós acenávamos de baixo, a criança respondia de cima.  “Vem, vem pra rua, vem contra o aumento”, a massa começou a cantar. A criança fez uma cara de susto. Boquiaberta, com o punho cerrado no alto, olhava atônita para a multidão. O moço que a segurava sorria. E não era pouco. Ele sorria muito. Uma lágrima escorreu no meu rosto. Essa nada tinha a ver com gás lacrimogêneo. A cena durou três segundos. O suficiente para ficar eternizada na minha memória.

Quinta – feira, 13 junho. Do outro lado, lado direito, um casal, na sacada do prédio, gritava com algumas pessoas na calçada: “Segura. Calma, calma. Eles estão lá em cima”. Os dois se referiam a Tropa de Choque, que fazia um bloqueio e não deixavam ninguém passar.  Ao mesmo tempo, um outro grupo berrava no mega-fone: “PSTU não sobe. Atenção!  PSTU não sobe  ninguém”.  Nesse momento, o clima já era mais tenso. Ninguém mais gritava, ninguém mais sorria. Meus amigos e eu, não demos atenção. Tentamos ser valentes, dar a cara à tapa. Recuamos na primeira bomba. Viramos numa rua lateral, acredito eu, na Maria Antônia de Queirós.

Quinta - feira, 13 de junho.  Maria Antônia, Bela Cintra. Consolação. Acredito que foi esse o trajeto. Paramos entre a Rua Fernando de Albuquerque e a Maceió.  Alguns carros já estavam atravessados na pista. Havia cavalaria na parte de cima e na parte de baixo. Emboscada! Estávamos, então, cercados. Pediram para abaixar, sentar no chão: “Senta! Senta”.  Será que é uma boa idéia? Pensei comigo. Mas, sentei. Todos ao meu redor sentaram também.  BUM! Bombas e tiros! Levantamos. Começaram a correr.  A única fuga possível era entrando pela rua Maceió, aquela do restaurante Sujinho. Não dava para saber de onde as bombas vinham, mais de uma vez, fiquei com a impressão de estarem sendo jogadas de cima. Agora, caíam do nosso lado, uma atrás da outra. Uma cortina branca se fez. As pessoas, esmagadas entre a mira dos revolveres e da parede, não sabiam se iam ou se ficavam.  Nesse momento, eu estava perto da calçada, já não conseguia respirar ou enxergar. Tudo o que existia em mim queimava. Fiquei com medo. Paralisei. Não conseguia correr, só pensava: as pessoas vão me derrubar, eu vou ser pisoteada. Um amigo então me agarrou pelo braço, empurra daqui, puxa dali. “Corre!” – foi a ordem que ouvi. Ouvi e obedeci. Com os olhos lacrimejando, meio aberto, meio fechado, vi pessoas vomitando ao meu lado.  “Vinagre, vinagre”, implorei assim que sai do sufoco.  Apareceram dois meninos, molharam minha máscara e meu rosto. Enfim, respirei. Tinha sobrevivido.  


Google Maps do trajeto feito.

 Quinta-feira, 13 de junho.  Os amigos seguiam mandando mensagens pelo celular. Whatsapp e Facebook.  Estavam preocupados, queriam notícia. E ao mesmo tempo, mandavam coordenadas. “Clinicas tem 10 camburões”, “Paulista fortemente armada”, “Choque na Bela Cintra”.  Entramos na Angélica e lá seguimos por dentro.  A sensação era de estar sendo caçada, brincávamos de o gato caça o rato. Eles, os militares eram o Tom; nós, os militantes, o Jerry.  Só que não era desenho animado, era a vida real. Era uma guerra. Guerra. Não era a primeira vez que aquela palavra vinha à mente. Tentava mandar noticias aos que estavam em casa: “Tá foda. Mas, estou bem! Tô viva”, escrevi para duas amigas.  Seguíamos pelas ruas residenciais. As pessoas nos quintais e nos portões dos prédios olhavam, acenavam e filmavam. De certa forma, dava-nos força para continuar. O grito voltou a ecoar: “OooOooo o povo acordou”.





Quinta - feira, 13 de junho. As bombas não cessavam. Os tiros também não. Agora estávamos numa praça. Talvez a Clemente Ferreira, talvez a Marechal Cordeiro de Farias. Não sei bem.  A única coisa que sei é que vi a tropa de choque a 250 metros de mim e que, de novo, voltei a sentir medo. Com a mochila na mão, corri e corri muito. Já não havia mais manifestação ou passeata. O que restava eram pessoas desesperadas, correndo sem olhar para trás, tentando se defender de algum modo.  A intenção primária era ficar em pé.  No caminho encontrei com uma mulher, ela estava no celular e chorava muito. “Eu só queria ir pra casa. Eu só queria ir pra casa”. Fiquei na dúvida: parar para ajudar ou não. Decidi que não tinha muito o que fazer. Ela foi para um lado, eu para o outro. Espero que tenha conseguido chegar em casa com segurança.

Quinta - feira, 13 de junho. Sem conseguir chegar a Paulista e com a polícia se aproximando, a Dr. Arnaldo, cheia de carros e ônibus, parecia ser a solução mais segura. Por mais loucos e assassinos que aqueles policiais pudessem parecer, ninguém acreditava que eles jogariam bombas nas pessoas que, nada tinha a ver com o evento. Elas, assim como nós, estavam tentando exercer o direito legitimo de ir e vir. E também, assim como nós, foram acertadas com bombas de gás lacrimogêneo e de pimenta. Pois é, estávamos enganados, bombas caíram ali também. Era possível ver motoristas e cobradores tentando respirar sem conseguir. Alguns manifestantes ajudavam e doavam vinagre. “Isso aqui está impossível”, ouvi alguém dizer.

Quinta – feira, 13 de junho. O boato era de que as estações do metrô estavam fechadas. Eram cerca de 60 pessoas perdidas, sem saber o que fazer. Ir ou ficar? Eis a questão. Um minuto e meio de indecisão. BUM! Mais tiros e mais bombas.  Todos correram, descendo a Major Natanael. Lá embaixo o Pacaembu. Tentei lembrar as outras vezes que desci aquela rua, indo aos jogos do Corinthians. Idiotice. Uma bomba caiu e a menina que estava ao meu lado também. Não sei se de susto, não sei se acertada. Atravessei a avenida. Olhei para trás e vi que estava na mira dos policiais. Do meu lado, um cara foi acertado com um tiro de borracha na cabeça. Cogitei parar e ajudar e no mesmo minuto meu amigo, lendo a minha mente, gritou: “Corre! Corre!”. Obedeci. Mais a frente, um outro amigo indicava o caminho, uma rua paralela, a qual nunca tinha percebido a existência: “Por aqui! Por aqui!”. Saímos da rota dos policiais. Ufa! Eu estava viva. De novo, mais uma vez. O barulho dos tiros persistia, salve-se quem puder.


Foto: Gabriela Abrunheiro

Quinta - feira, 13 de junho. “Rafa, das outras vezes também foi assim?”. “Não, hoje eles não esperaram nem começar. Queriam mesmo pegar”. Novamente a palavra guerra veio na cabeça.
Seguíamos pelas ruas do bairro de Higienópolis. No caminho, barricadas. Naquelas ruas alternativas, lixo tinha sido queimado. Alguns ainda terminavam de pegar fogo.  Será mesmo que foram os manifestantes que fizeram aquilo? A ideia não era passar por ali. O grupo já estava totalmente disperso. Meu corpo já não aguentava mais. Minha mente também não. Caminhávamos em silêncio, as seis pessoas. Ainda assim, eu conseguia ouvir o Choque, os tiros, as bombas.

Quinta-feira, 13 de junho. “Alô, mãe? Eu tô bem! Tô legal. Estou tentando voltar pra casa. Procurando algum metrô aberto. É verdade, eu tô bem. Estou com os amigos. Mãe, eu sou jornalista, tenho que estar aqui. Não seria eu se não estivesse”. Tentava tranquilizar a minha mãe, que argumentava que eu era jornalista esportiva e que aquilo ali não era esporte. Terminei a ligação com um sorriso no rosto. A sensação era de estar no lugar certo, fazendo a coisa certa. A cidade estava pulsando, correndo, gritando, lutando e eu estava lá.

Quinta-feira, 13 de junho. As notícias chegavam aos poucos. Colegas de imprensa presos, feridos. Amigos de faculdade e transeuntes machucados. Policiais que queimaram colchões e quebraram o vidro do carro para colocar a culpa nos manifestantes. E eu já não sabia o que sentir. Um misto de orgulho, nojo. Felicidade e tristeza. O nó na garganta persistia. Vivi o que os livros de história me contaram: a luta por um mesmo ideal, o grito de cansaço de um povo, o despreparo e a repressão de uma policia fascista, que de nada protege. “Ei, você aí fardado, também é explorado”.

Quinta-feira, 13 de junho. Não saí ferida. Fisicamente ferida. A não ser pela unha do dedão do pé que está roxa, pisada, se preparando para cair. E quando cair não vai restar nada. Comparado aos outros, aos companheiros de batalha, nada. Moralmente é diferente. As marcas vão ficar para sempre. Ouvi gritos, choros, bombas e tiros. Gritos. Bombas. Mesmo com medo, me senti mais humana.  Mesmo, sem enxergar e respirar, me senti mais viva. Depois de tanto gás, as lágrimas secaram, parece. Estão presas.  Repasso em looping todas as cenas.  Ainda não consigo compreender. Meus ombros tensos. “A alma guarda o que a mente tenta esquecer”, já diria Mano Brown.

Quinta-feira, 13 de junho. Dia de fazer História. Dia de ser História. De mudar a História. Lápis e papel. Máscara e vinagre. Dia de ir pra rua. “Às ruas!”.  De vencer o medo e soltar o grito. De mostrar que não é por vinte centavos – e mesmo se fosse. Saímos do computador, levantamos do sofá. Cansamos! E estamos vivos. Uma cidade muda não muda. Não nos calarão. Amanhã vai ser maior.  “Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer!”.  



Foto: Cartaz na Avenida Paulista

Quinta-feira, 13 de junho. São Paulo não parou. Acordou!