Um pequeno relato do que eu vi, vivi e ouvi na manifestação contra o
aumento da tarifa do transporte público em São Paulo. O dia foi histórico.
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Foto: Gabriela Abrunheiro |
Quinta - feira, 13 de junho. O clima já era de
tensão horas antes. Ainda no trabalho, pelas redes sociais e pelo celular, os
amigos mandavam mensagens e me pediam cuidado. Segundo eles, a PM já estava
ocupando o centro da cidade e estava autorizada, pelo prefeito, governador e
pela mídia a bater, ainda mais, nos que estivessem na rua. Um colega, veterano,
foi preso antes mesmo de chegar à manifestação. Na sua mochila, uma blusa, uma
câmera e uma garrafa de água. Outros, apenas por portar vinagre ou estar
comprando um cigarro.
Quinta - feira, 13 de junho. Já estava na
portaria do prédio onde trabalho. Minha chefe, sentada, fumava. Informei que
estava saindo um pouco mais cedo, que iria à manifestação. "Você vai estar
nos livros de história dos meus netos? Então, ok". Dois passos à frente,
meu celular toca. Minha mãe me pedia para ir pra casa, passar longe do
protesto. Argumentei que precisava estar lá e prometi mandar notícias.
Quinta - feira, 13 de junho. Encontrei com dois
amigos da faculdade (de jornalismo, Cásper Líbero) na catraca do metrô
República às 18h30. Ali, os seguranças da estação, de capacete e coletes a
prova de balas, já faziam um cordão e olhavam com cara feia para aqueles que
pareciam suspeitos. Dois jovens
adentravam a estação e já gritavam: “Mãos para o alto, três e vinte é um
assalto”.
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Foto: Gabriela Abrunheiro |
Quinta – feira, 13 de junho. Entramos no meio da multidão. Era tanta gente que não conseguíamos
identificar onde começava e/ou terminava. Bandeiras, faixas, cartazes. As caras
estavam pintadas, os narizes, vermelhos. Alguns rostos cobertos por blusas,
lenços e máscaras. O clima era bom, as pessoas pareciam felizes. A bateria
ditava o ritmo. E tinha gente de todo o tipo, como é comum a São Paulo. Jovens,
velhos, trabalhadores, estudantes, partidaristas, skatistas e todas as outras
tribos que aqui vivem e sobrevivem. O
grito “CPTM, vê se me escuta, a sua luta é a nossa luta” – apoiava a greve dos
ferroviários, que acontecia naquele mesmo dia.
Quinta – feira, 13 de junho. Estávamos na Augusta, rua que liga o bairro dos Jardins ao baixo centro, símbolo da pluralidade existente na cidade. Éramos um grupo de umas 400, 500 pessoas. Pode ser que mais, não sou muito boa com números. A ideia era subir até a Av. Paulista só que estávamos parados, literalmente no meio da rua. Na janela de um prédio do lado esquerdo, um moço segurava uma criança, loira, de cabelos médios, encaracolados. Não sei se menino ou menina, mas deveria ter uns quatro anos. Nós acenávamos de baixo, a criança respondia de cima. “Vem, vem pra rua, vem contra o aumento”, a massa começou a cantar. A criança fez uma cara de susto. Boquiaberta, com o punho cerrado no alto, olhava atônita para a multidão. O moço que a segurava sorria. E não era pouco. Ele sorria muito. Uma lágrima escorreu no meu rosto. Essa nada tinha a ver com gás lacrimogêneo. A cena durou três segundos. O suficiente para ficar eternizada na minha memória.
Quinta – feira, 13 junho. Do outro lado, lado
direito, um casal, na sacada do prédio, gritava com algumas pessoas na calçada:
“Segura. Calma, calma. Eles estão lá em cima”. Os dois se referiam a Tropa de
Choque, que fazia um bloqueio e não deixavam ninguém passar. Ao mesmo tempo, um outro grupo berrava no mega-fone:
“PSTU não sobe. Atenção! PSTU não sobe ninguém”.
Nesse momento, o clima já era mais tenso. Ninguém mais gritava, ninguém
mais sorria. Meus amigos e eu, não demos atenção. Tentamos ser valentes, dar a
cara à tapa. Recuamos na primeira bomba. Viramos numa rua lateral, acredito eu,
na Maria Antônia de Queirós.
Quinta - feira, 13 de junho. Maria Antônia, Bela Cintra. Consolação.
Acredito que foi esse o trajeto. Paramos entre a Rua Fernando de Albuquerque e
a Maceió. Alguns carros já estavam
atravessados na pista. Havia cavalaria na parte de cima e na parte de baixo. Emboscada!
Estávamos, então, cercados. Pediram para abaixar, sentar no chão: “Senta!
Senta”. Será que é uma boa idéia? Pensei
comigo. Mas, sentei. Todos ao meu redor sentaram também. BUM! Bombas e tiros! Levantamos. Começaram a
correr. A única fuga possível era
entrando pela rua Maceió, aquela do restaurante Sujinho. Não dava para saber de
onde as bombas vinham, mais de uma vez, fiquei com a impressão de estarem sendo
jogadas de cima. Agora, caíam do nosso lado, uma atrás da outra. Uma cortina
branca se fez. As pessoas, esmagadas entre a mira dos revolveres e da parede,
não sabiam se iam ou se ficavam. Nesse
momento, eu estava perto da calçada, já não conseguia respirar ou enxergar.
Tudo o que existia em mim queimava. Fiquei com medo. Paralisei. Não conseguia
correr, só pensava: as pessoas vão me derrubar, eu vou ser pisoteada. Um amigo
então me agarrou pelo braço, empurra daqui, puxa dali. “Corre!” – foi a ordem
que ouvi. Ouvi e obedeci. Com os olhos lacrimejando, meio aberto, meio fechado,
vi pessoas vomitando ao meu lado.
“Vinagre, vinagre”, implorei assim que sai do sufoco. Apareceram dois meninos, molharam minha máscara
e meu rosto. Enfim, respirei. Tinha sobrevivido.
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Google Maps do trajeto feito. |
Quinta - feira, 13 de junho. As bombas não
cessavam. Os tiros também não. Agora estávamos numa praça. Talvez a Clemente
Ferreira, talvez a Marechal Cordeiro de Farias. Não sei bem. A única coisa que sei é que vi a tropa de
choque a 250 metros de mim e que, de novo, voltei a sentir medo. Com a mochila
na mão, corri e corri muito. Já não havia mais manifestação ou passeata. O que
restava eram pessoas desesperadas, correndo sem olhar para trás, tentando se
defender de algum modo. A intenção
primária era ficar em pé. No caminho
encontrei com uma mulher, ela estava no celular e chorava muito. “Eu só queria
ir pra casa. Eu só queria ir pra casa”. Fiquei na dúvida: parar para ajudar ou
não. Decidi que não tinha muito o que fazer. Ela foi para um lado, eu para o
outro. Espero que tenha conseguido chegar em casa com segurança.
Quinta - feira, 13 de junho. Sem conseguir chegar
a Paulista e com a polícia se aproximando, a Dr. Arnaldo, cheia de carros e
ônibus, parecia ser a solução mais segura. Por mais loucos e assassinos que
aqueles policiais pudessem parecer, ninguém acreditava que eles jogariam bombas
nas pessoas que, nada tinha a ver com o evento. Elas, assim como nós, estavam
tentando exercer o direito legitimo de ir e vir. E também, assim como nós,
foram acertadas com bombas de gás lacrimogêneo e de pimenta. Pois é, estávamos
enganados, bombas caíram ali também. Era possível ver motoristas e cobradores
tentando respirar sem conseguir. Alguns manifestantes ajudavam e doavam
vinagre. “Isso aqui está impossível”, ouvi alguém dizer.
Quinta – feira, 13 de junho. O boato era de que
as estações do metrô estavam fechadas. Eram cerca de 60 pessoas perdidas, sem
saber o que fazer. Ir ou ficar? Eis a questão. Um minuto e meio de indecisão. BUM!
Mais tiros e mais bombas. Todos
correram, descendo a Major Natanael. Lá embaixo o Pacaembu. Tentei lembrar as
outras vezes que desci aquela rua, indo aos jogos do Corinthians. Idiotice. Uma
bomba caiu e a menina que estava ao meu lado também. Não sei se de susto, não
sei se acertada. Atravessei a avenida. Olhei para trás e vi que estava na mira
dos policiais. Do meu lado, um cara foi acertado com um tiro de borracha na
cabeça. Cogitei parar e ajudar e no mesmo minuto meu amigo, lendo a minha
mente, gritou: “Corre! Corre!”. Obedeci. Mais a frente, um outro amigo indicava
o caminho, uma rua paralela, a qual nunca tinha percebido a existência: “Por
aqui! Por aqui!”. Saímos da rota dos policiais. Ufa! Eu estava viva. De novo, mais
uma vez. O barulho dos tiros persistia, salve-se quem puder.
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Foto: Gabriela Abrunheiro |
Quinta - feira, 13 de junho. “Rafa, das outras
vezes também foi assim?”. “Não, hoje eles não esperaram nem começar. Queriam
mesmo pegar”. Novamente a palavra guerra veio na cabeça.
Seguíamos pelas ruas
do bairro de Higienópolis. No caminho, barricadas. Naquelas ruas alternativas,
lixo tinha sido queimado. Alguns ainda terminavam de pegar fogo. Será mesmo que foram os manifestantes que
fizeram aquilo? A ideia não era passar por ali. O grupo já estava totalmente
disperso. Meu corpo já não aguentava mais. Minha mente também não. Caminhávamos
em silêncio, as seis pessoas. Ainda assim, eu conseguia ouvir o Choque, os
tiros, as bombas.
Quinta-feira, 13 de junho. “Alô, mãe? Eu tô
bem! Tô legal. Estou tentando voltar pra casa. Procurando algum metrô aberto. É
verdade, eu tô bem. Estou com os amigos. Mãe, eu sou jornalista, tenho que
estar aqui. Não seria eu se não estivesse”. Tentava tranquilizar a minha mãe,
que argumentava que eu era jornalista esportiva e que aquilo ali não era
esporte. Terminei a ligação com um sorriso no rosto. A sensação era de estar no
lugar certo, fazendo a coisa certa. A cidade estava pulsando, correndo,
gritando, lutando e eu estava lá.
Quinta-feira, 13 de junho. As notícias chegavam
aos poucos. Colegas de imprensa presos, feridos. Amigos de faculdade e transeuntes
machucados. Policiais que queimaram colchões e quebraram o vidro do carro para colocar a culpa nos manifestantes. E eu já não sabia o que sentir. Um misto de
orgulho, nojo. Felicidade e tristeza. O nó na garganta persistia. Vivi o que os
livros de história me contaram: a luta por um mesmo ideal, o grito de cansaço
de um povo, o despreparo e a repressão de uma policia fascista, que de nada
protege. “Ei, você aí fardado, também é explorado”.
Quinta-feira, 13 de junho. Não saí ferida.
Fisicamente ferida. A não ser pela unha do dedão do pé que está roxa, pisada,
se preparando para cair. E quando cair não vai restar nada. Comparado aos
outros, aos companheiros de batalha, nada. Moralmente é diferente. As marcas
vão ficar para sempre. Ouvi gritos, choros, bombas e tiros. Gritos. Bombas. Mesmo
com medo, me senti mais humana. Mesmo,
sem enxergar e respirar, me senti mais viva. Depois de tanto gás, as lágrimas
secaram, parece. Estão presas. Repasso
em looping todas as cenas. Ainda não
consigo compreender. Meus ombros tensos. “A alma guarda o que a mente tenta
esquecer”, já diria Mano Brown.
Quinta-feira, 13 de junho. Dia de fazer História. Dia de ser História. De mudar a História. Lápis e papel. Máscara e
vinagre. Dia de ir pra rua. “Às ruas!”. De vencer o medo e soltar o grito. De mostrar
que não é por vinte centavos – e mesmo se fosse. Saímos do computador,
levantamos do sofá. Cansamos! E estamos vivos. Uma cidade muda não muda. Não nos
calarão. Amanhã vai ser maior. “Vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera
acontecer!”.
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Foto: Cartaz na Avenida Paulista |
Quinta-feira, 13 de junho. São Paulo não parou.
Acordou!